quinta-feira, abril 20, 2006

Seminário Direito de Autor e Bibliotecas

Findo o seminário, o regresso a casa e uma enorme enxaqueca. As comunicações foram boas mas são muito preocupantes. Parece que as conclusões do Tribunal Europeu não são favoráveis a Portugal e corremos o risco de ter de enfrentar uma sentença negativa. O comodato público (ou empréstimo pelas bibliotecas) não pode ter um leque de excepções que inclua todas as bibliotecas. Ou seja, as excepções vão ter de ser menores. A SPA (representada pelo Dr. João Laborinho Lúcio) defende que devem ficar isentas apenas as bibliotecas escolares e as bibliotecas universitárias. Restam pois as Bibliotecas Públicas e os Centros de Documentação. Quem vai pagar o empréstimo nestas bibliotecas, pergunto? Os leitores? Não porque não têm meios. São pobres, por isso é que utilizam as Bibliotecas. O Estado e as Autarquias que já têm tanta dificuldade em manter as bibliotecas abertas (com custos de pessoal, aquisições – que inclui a taxa de copyright – software, hardware, custos correntes e de manutenção, segurança, etc…) vão ainda pagar mais uma factura? E por outro lado o Estado não somos todos nós? Que estamos falidos enquanto pessoas, famílias, autarquias e país?... O que vai acontecer certamente é que o Estado (essa entidade marciana) vai desinvestir nas Bibliotecas, que já dão muita despesa sem a taxa do empréstimo. Estas vão se reduzir a um número mínimo nos bairros e autarquias mais rentáveis (onde os leitores podem pagar a taxa) Av. de Roma, Restelo, Quinta da Marinha, Foz do Douro e pouco mais, para combater a os elevados índices de iletracia dos queques, que podem pagar o empréstimo. E as outras vão fechar as portas. Sorry oncle Walt! We really have to shut our doors!...

Mas o Bibliotecário Anarquista não se rende e apresenta algumas sugestões ousadas:

1 – Transferência imediata dos fundos e staff das bibliotecas públicas para as bibliotecas escolares e universitárias.

2 – As bibliotecas escolares passam a ter pólos fora de portas ao anexar as bibliotecas públicas que fiquem perto de casa dos estudantes. Estas mudam assim de estatuto para bibliotecas escolares e fica o assunto arrumado.

3 – Último recurso. O Estado Português (lembrem-se somos nós!) renuncia à soberania e solicita à vizinha Espanha a reintegração imediata no Reino de Castela, invocando que a Restauração da Independência foi um equívoco, que resultou de uma indigestão e consequente ataque de fúria que o Duque de Bragança teve depois de ter ingerido um Bocadillo mal passado.

Digam de vossa justiça qual será o plano mais adequado e fiquem com as conclusões.

Abraço,

Bibliotecário Anarquista

CONCLUSÕES

A difícil neutralidade que me é exigida nestas conclusões obriga-me a garantir um equilíbrio entre o que aqui foi dito a favor do direito à propriedade intelectual, visto como um justo pagamento aos autores pelas diversas utilizações das suas obras protegidas e o que foi dito em favor dos utilizadores, clientes ou leitores habituais e potenciais das bibliotecas “o direito ao acesso livre e universal à informação, ao conhecimento científico e à cultura”.

Assim,

No início do terceiro milénio antes de Cristo os Sumérios inventaram os primeiros lugares para armazenar e classificar materiais escritos. As Bibliotecas. Desde então, nunca mais deixaram de existir. Cerca de 5 mil anos mais tarde, em finais do séc. XVIII início do séc. XIX depois d. C., a burguesia emergente da Revolução Francesa criou uma nova disciplina jurídica para tutelar um novo direito de propriedade que visava proteger a propriedade intelectual dos autores. O Direito de Autor. Desde a sua criação até ao final dos anos 60 do século XX as Bibliotecas e o Direito de Autor conviveram pacificamente.
Contudo a partir dos anos 70 uma série de factores contribuíram para que esta boa vizinhança entre as Bibliotecas e o Direito de Autor entrasse em colapso.
Em primeiro lugar o advento das reprografias (fotocópias) e a facilidade em copiar e difundir informação escrita protegida por copyright, que começou a ser muito utilizada nas bibliotecas, escolas e universidades.
Em segundo a mudança de “atitude” das bibliotecas que deixaram de ser meros repositórios de livros para efeitos de conservação e património, passando a ter uma atitude pró activa em matéria de promoção da leitura e difusão da informação e da cultura.
Em terceiro a própria explosão do acesso ao ensino superior (e às bibliotecas universitárias), que deixou de ser um privilégio de uma minoria. De uma elite. Generalizou-se nos países mais desenvolvidos a toda a população.
Em quarto a emergência de um direito de autor europeu, que por ser europeu os objectivos são, sobretudo, económicos e comerciais, sendo em menor escala culturais ou científicos.
Defende-se, assim, que a justa remuneração pela utilização das obras protegidas dá melhores garantias de desenvolvimento e eclosão duma “indústria” cultural mais competitiva quer a nível comunitário quer a nível mundial.
Defende-se também que não é justo fazer pesar sobre os criadores intelectuais a carga financeira das políticas públicas de difusão cultural.
Perante este cenário de restrição ao acesso de obras protegidas mediante o pagamento de royalties aos detentores de direitos autorais e direitos conexos, qual é a situação das bibliotecas e centros de documentação?
Em primeiro lugar convém não esquecer que as bibliotecas têm pelo menos mais cinco mil anos de existência que o Direito de Autor, pelo que podemos sempre invocar aos defensores do Direito de Autor que a boa educação exige “respeitinho pelos mais velhos”.
É caso para dizer: felizmente as bibliotecas têm mais cinco mil anos que o Direito de Autor, porque se fosse o contrário, se alguém se lembrasse hoje de criar uma instituição que tivesse por fim recolher, tratar e sobretudo difundir pela população obras protegidas por copyright de uma forma gratuita, seria imediatamente considerado um projecto ilegal, utópico, senão mesmo inconstitucional e certamente com direito a moldura penal para os prevaricadores (leia-se bibliotecários).
Mas felizmente ainda podemos consultar livremente obras protegidas nas nossas bibliotecas públicas e certamente que todos aqui presentes o fizeram regularmente, pelo menos ao longo da sua vida académica.
Eu confesso que utilizei e utilizo bibliotecas e até para redigir estas simples conclusões tive de pedir emprestadas algumas obras: livros e artigos científicos sobre Direito de Autor e Bibliotecas, que os requisitei de forma gratuita.
Como a transposição vigente da Directiva Comunitária 92/100/CE não impõe o empréstimo pago nas bibliotecas, não de pagar por cada documento emprestado, para efectuar este trabalho gratuito.
É que sendo gratuito não me apetece pagar para o fazer. Agora pergunto o que acontecerá à produção científica em Portugal no dia em que os estudantes e os investigadores tiverem de pagar uma taxa por cada documento emprestado nas bibliotecas. Perdem os estudantes que lêem menos e ficam a saber menos. E perde o país que fica com os recursos humanos menos qualificados e uma produção científica de menor qualidade. Perdem também, a longo prazo as editoras e os autores, porque entretanto se perderam hábitos de estudo e de leitura.
Para dar uma ideia:
«No Reino Unido, onde se paga a taxa pelo empréstimo de livros nas bibliotecas desde 1993, a redução de empréstimos foi considerável desde a implementação da taxa: de 563 milhões de empréstimos em 1993, passou-se a 406 milhões em 2003; o mesmo é dizer que em dez anos de aplicação da taxa, o Reino Unido reduziu os seus empréstimos em 157 milhões» Fonte II Jornadas Contra el Préstamo de Pago.O que significará a adopção desta medida por Portugal?A IFLA (Internatinal Federation of Library Association) considera que «a tendência actual de inclusão de novos âmbitos do Direito de Autor e de supressão das tradicionais restrições e excepções ao Direito de Autor exercerá uma profunda influência negativa na educação e investigação e no fruto das mesmas. O mesmo é dizer uma influência negativa sobre o progresso económico, científico e cultural das pessoas, das nações e da sociedade o qual se repercutirá sobretudo na economia dos países em vias de desenvolvimento». Fonte: La posición de la IFLA frente al derecho de préstamo al público.
Pagar para levar livros da biblioteca é o mesmo que dizer ao estudante e ao investigador. Não têm dinheiro, então não estudam! Ou estudam menos. Ou aos leitores das bibliotecas públicas. Não têm dinheiro, não lêem! Lamento mas não têm acesso à cultura. É, parece-me, profundamente injusto e um regresso ao modelo económico ultra liberal em que os mais desfavorecidos não tinham direitos. Ou só o tinham formalmente.
E lembro que as bibliotecas públicas e universitárias, ao contrário do Direito de Autor, têm também uma missão social. Uma responsabilidade social de promover o acesso à cultura, ao estudo, à investigação e ao conhecimento científico àqueles que são mais desfavorecidos. Àqueles que não têm meios económicos para o fazer. Àqueles que poderão ser futuros cientistas, professores, escritores – em suma AUTORES - se lhes fornecermos hoje os meios e as ferramentas necessárias.
E pode ser também, na perspectiva daqueles cujo negócio passa pela comércio da propriedade intelectual, a “matança” da galinha dos ovos de ouro, uma vez que cortando as hipóteses de leitura aos mais desfavorecidos de hoje, cortam também os seus potenciais hábitos de leitura futuros. Não é difícil imaginar que em bibliotecas como a Bedeteca (Olivais), onde a grande percentagem de leitores são adolescentes dos bairros sociais de Chelas, Marvila e Olivais, quando lhes for cobrado o empréstimo desaparecem. Deixam de ler. Ou, hipótese mais optimista na perspectiva da leitura, assaltam a biblioteca!
Por último é bom lembrar que as questões relevantes em matéria de Direito de Autor e Bibliotecas não se esgotam com a questão do comodato ou empréstimo e da transposição da “famosa” Directiva Comunitária para o ordenamento jurídico português – que foi um pouco a “pedra de toque” deste Seminário. É bom lembrar que subsistem numerosas questões relacionadas com os serviços de reprografia. Subsistem problemas específicos relacionados com os materiais sonoros e audiovisuais. Persistem ainda muitos problemas relacionados com os documentos digitais, universo onde creio nem sequer as excepções resultantes da utilização livre estão previstas. O que é grave.

Por último gostaria de deixar uma declaração, possivelmente sem qualquer efeito jurídico.

Copyleft statement
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Adalberto Barreto