sexta-feira, outubro 27, 2006

As bibliotecas e o referendo


Ilustração: Anke Feuchtenberger

Batalha, 20 de Outubro, 18h19m
Sara, técnica superior na Biblioteca Ptolomaica da Cova da Iria, entra na sala e comunica ao marido. «O teste deu positivo. Confirma-se». Os putos, uma menina de 5 anos e um rapaz de um ano, brincam indiferentes no chão. Pedro sentado no sofá desvia o olhar d’ «A bola» e pergunta. «E agora?...»

Torres Vedras, 20 de Outubro, 18h25m
Ana Cristina, estudante no 10º ano, consulta a Internet na biblioteca pública local. Vira-se para Paula, sua amiga, e sussurra nervosamente: «O site woman on waves diz quais são os comprimidos a tomar». «Acho que não existem em Portugal. Pode-se mandar vir pela Internet, mas demoram 15 dias… Tenho medo! E se a coisa corre mal e tenho de ir para o hospital de urgência?...»

Castelo Branco, 20 de Outubro, 18h32m
«É melhor ir a Espanha?... Diz Alberto, pai de Clara que frequenta o 2º curso de técnicos profissionais de bibliotecas e documentação. Maria do Céu, a mãe, já tomou 3 comprimidos e não sabe se está assim por causa da gravidez ou por causa do aborto.

Grândola, 20 de Outubro, 18h45m
«Buenas tardes! Es de la clínica de Badajoz?» Pergunta Catarina, directora do Centro de Documentação e Estudos Avançados de Vila Morena, no seu castelhano fluente. «Es que estoy embarazada de seis semanas y...»
«É sim! Boa tarde? Respondem do outro lado da linha num português perfeito. Para o tratamento da gravidez são 500 euros com anestesia geral, 350 com anestesia local e 150 com comprimidos. Este último não recomendamos, pois se correr mal terá de regressar para um eventual internamento. Podemos marcar para amanhã às 10h de Portugal?...»

Lisboa, Gare do Oriente, 21 de Outubro às 6h50.
Adriana, brasileira do Ceará e trabalhadora na “LimpoServiço” que, todas as manhãs, limpa e desinfecta a Grande Biblioteca do Conhecimento Virtual Lusitano, entra no autocarro que a conduzirá à capital da Extremadura.


Não existem dados fiáveis, mas parece que em 2005 cerca de 20.000 mulheres abortaram clandestinamente em Portugal ou foram fazê-lo a Espanha. Não é normal, não é justo, não é humano que a interrupção voluntária da gravidez seja um crime.