Ilustração de Pepe Montserrat
...pensou para si João Silva, 3º ajudante na Biblioteca Municipal Central anexa à Escola Municipal n.º 1 na Rua da Inveja, naquela manhã solarenga de 5 de Maio de 1908.
- Os chefes Terenas e Almeida** não são más pessoas, mas andam por aí a pavonear-se com os republicanos, os intelectuais e os estudiosos que frequentam a Biblioteca Popular e nem reparam que o importante são os operários, as peixeiras, as varinas, os carvoeiros e mesmo as prostitutas, os devassos, os mendigos e sobretudo os filhos destes abandonados e ao Deus dará. Podíamos fazer mais. Podíamos fazer o que fazem as bibliotecas da América do Norte. Tenho lido notícias que não se limitam a abrir as portas e esperar que as pessoas entrem. Emprestam livros. Muitos livros. Organizam actividades de lazer e são muito frequentadas por crianças. Têm inclusivamente salas para os petizes que podem levar para casa os livros e aos sábados contam-lhes histórias e fazem teatros. Aposto que se continuarem assim vão ser uma nação império daqui a 50 anos e nós, portuguezes, continuaremos na chafurdar na bosta.
- São criaturas bem-intencionadas, os chefes, mas não entendem isto. Estão mais preocupados com as reuniões da Alta Venda***, com o hastear da bandeira republicana ou em proferir discursos inflamados, e não lhes incomoda o facto de em cem mil alfacinhas, apenas novecentas almas estarem inscritas no Livro Oficial das Bibliothecas.
* “Carbonária Portuguesa”, organização secreta de carácter político. Para muitos é vista como “o braço armado da Maçonaria” e presumivelmente responsável pelo regicídio de 1908.
**Feio Terenas (1850-1920) primeiro bibliotecário na Câmara Municipal de Lisboa e Luz Almeida conservador-ajudante.
*** Alta Venda, cúpula da estrutura orgânica “Carbonária Portuguesa”.